Este artigo foi originalmente publicado na Revista Horizontes da
Sociedade Brasileira de Computação, edição de abril de 2012. Link para o artigo.
ALQUIMIA DIGITAL
Cristina
Duarte Murta
Resumo:
Este artigo defende, baseando-se em avanços recentes da
neurociência, que não é possível criar inteligência em um objeto
não vivo, como o computador. Frente às novas descobertas, a tarefa
de criar inteligência artificial parece se tornar ainda mais
difícil.
A
história da ciência reserva um capítulo especial à alquimia,
cujos objetivos incluíram encontrar a pedra filosofal, que seria
capaz de transformar metais não nobres, tais como o chumbo, em ouro.
Séculos de tentativas resultaram em fracasso, mas produziram uma
das ciências mais fascinantes e bem estabelecidas, a química. A
produção sintética de ouro foi obtida posteriormente em reatores
nucleares, em quantidades atômicas, a um custo muito superior ao seu
valor comercial. Assim, esse objetivo alquímico não foi alcançado
pois o ouro não foi produzido em quantidade e custo desejados. Os
estudos em química continuam vigorosos, mas alquimia não é uma
disciplina do currículo.
A
comparação da promessa de inteligência artificial (IA) à alquimia
foi feita pelo filósofo americano Hubert Dreyfus, professor da
Universidade da Califórnia em Berkeley, em um artigo publicado em
1965 [1]. Neste artigo e em várias obras nas décadas seguintes,
Dreyfus rejeita a possibilidade de um computador digital ser
programado para exibir comportamento similar à inteligência humana
[2,3]. Segundo ele, desenvolvimentos significativos em inteligência
artificial devem aguardar a construção de computadores de um tipo
completamente diferente.
A
possibilidade da IA foi também rejeitada pelo cientista da
computação Peter Naur, premiado com o ACM Turing Award em
2005. Naur estudou, durante mais de cinquenta anos, as relações
entre a computação e o pensamento humano. Seu discurso de recepção
do prêmio foi publicado em um artigo, no qual ele faz uma revisão
de seu trabalho [4]. Naur inicia o artigo apontando a ironia de
receber o prêmio Turing rejeitando as ideias de Alan Turing. Naur
entende que a computação é uma ferramenta para descrição de
algoritmos e programas, muito útil para representar uma grande
variedade de fenômenos, mas o pensamento humano não está incluído.
O pensamento é devido à plasticidade dos elementos do sistema
nervoso, que não é encontrada em computadores. Para representar o
pensamento humano é necessário ter uma forma material completamente
diferente, não digital. Em grande medida, suas conclusões são
similares às de Dreyfus.
Desde
seus primórdios, o conceito referencial de inteligência para a IA é
a inteligência humana, como explica John McCarthy, professor da
Universidade Stanford, a quem é atribuída a criação do termo [5].
A inteligência humana caracteriza-se pela capacidade de
compreender, abstrair, raciocinar, planejar, solucionar problemas,
usar a linguagem, aprender e esclarecer-se. Ser inteligente é
surpreender, é receber e responder ao novo [6]. Trata-se de razão
e entendimento, capacidades que não existem nos computadores
digitais, e também de emoção e sentimento, conforme apontam os
estudos mais avançados em neurociências [7, 8, 9].
Há
quem concorde que é impossível programar comportamentos
inteligentes nos computadores e, ainda assim, defenda o uso da
expressão “inteligência artificial” como mera estratégia de
marketing científico. Afinal, a ideia tem grande apelo e vende bem.
Para esses pesquisadores, o uso do termo é apenas e tão somente
marketing, embora concordem que abandonar o rótulo faria mais bem à
ciência e à sociedade do que mantê-lo. Mas a ciência não faz
concessões quanto a sua principal premissa, a verdade. Para ter esse
nome, a IA deve fazer exatamente o que promete: criar inteligência
artificial, não arremedos, imitações ou simulações de
inteligência.
Para
demonstrar que os computadores são máquinas de processamento
sintático e que não são capazes de compreender, John Searle
propôs o chamado argumento do quarto chinês [10]. Esse argumento
consiste em um experimento no qual uma pessoa que entende somente
inglês é colocada em um quarto contendo cestas repletas de símbolos
do idioma chinês. Há também nesse quarto um livro em inglês que
explica como juntar os símbolos chineses com base em seu desenho.
Pessoas fora do quarto enviam mensagens ao quarto em chinês. A
pessoa que está no quarto consulta o livro de regras para saber o
que fazer com os rabiscos recebidos e devolve outros símbolos em
chinês. Quem está fora do quarto será capaz de dizer que o sistema
que recebe as entradas e emite respostas entende chinês, o que não
é verdade. A pessoa que está no quarto representa o computador, o
livro de regras representa o programa e os símbolos recebidos e
emitidos são a entrada e a saída.
Esse
argumento demonstra que o computador é uma máquina de manipulação
simbólica, que manipula símbolos de acordo com regras de
programação. Os símbolos são puramente formais ou sintáticos e
sem significado para o sistema computacional. Quando fazemos um
teste, por exemplo, 4 < 5, pensamos na noção material de
quantidade, quatro objetos e cinco objetos, enquanto o computador
inspeciona os bits codificados para os caracteres 4 e 5. Esta
inspeção de bits serve para dirigir o fluxo de execução, criando
um desvio de uma linha de execução a outra.
Os
programas são estruturas sintáticas e o sistema computacional é
uma máquina de processamento sintático. Nessa máquina não existe
computação semântica. Toda a computação dita semântica é
feita com linguagens de marcação que são puramente sintáticas. A
semântica dos símbolos está em nós, em nossa interpretação da
informação, não no sistema. Por isso, ironicamente, o ser humano é
reconhecido como “a aplicação essencial” (the killer
application), pois é quem é capaz de oferecer a semântica que
o sistema não tem. Como escreveu John Searle, não é fato que
estamos no caminho para a computação semântica, o fato é que este
jogo nem está sendo jogado [10]. Vencedor em um programa de
perguntas na TV americana, o computador Watson é um exemplo
contundente da ausência de contexto: jogou sem querer, ganhou sem
saber.
Uma
análise da literatura da área de IA revela uma série de armadilhas
verbais e interpretações abusivas que iludem o leitor desatento. Em
geral, as definições de IA são agrupadas em duas categorias:
capacidade de pensar e capacidade de agir [11]. No entanto, um
computador não pensa nem age. Para pensar e agir é preciso
existir. Penso, logo existo, escreveu Descartes [12]. Existo, logo
penso, corrigiu Damásio [7]. Nos dois casos há inequívoca
associação entre a existência do ser vivente e o pensamento. Mas o
computador não é um ser vivo, embora alguns pesquisadores defendam
o contrário. Agir é um comportamento ativo, é tomar providências,
atuar. Para isso é necessário raciocinar e decidir, coisas que o
computador não faz [7,8,9].
Um
sistema computacional não percebe, não toma decisões, não resolve
problemas, nem aprende. Um computador não pode perceber um
ambiente, pois ele não tem sentidos. Acoplado de sensores, ele pode
fazer medições físicas em um ambiente, mas ele não é capaz de
perceber um ambiente tal como nós o percebemos. Uma aeronave, por
exemplo, é equipada com milhares de sensores, mas os engenheiros
aeronáuticos não concordariam em dizer que a aeronave percebe o
espaço em que voa.
Um
computador não toma decisões. Ao fazer um comando de teste, o
computador inspeciona bits que indicam o caminho de execução a
seguir. Podemos, opcionalmente, entender que o sistema, ao executar
um comando de teste, está avaliando para tomar decisão. Porém,
essa é uma interpretação fantasiosa.
Um
computador não aprende. Ele pode acumular informações em formatos
binários, por exemplo, inserindo informações em uma estrutura de
dados, tal como insere uma linha em um banco de dados. Entender que
isso é aprendizado trata-se, de fato, de uma interpretação nossa,
e não de um aprendizado real, um processo cognitivo. O aprendizado
humano concretiza-se por modificações cerebrais de tal forma que
grande parte da composição do cérebro humano é individual e única
e reflete a história e as circunstâncias de vida de cada indivíduo
[7].
Um
computador não resolve problemas, ele é programado para
resolvê-los. Cada programa contém instruções com a solução
programada. Esses exemplos mostram, novamente, que a semântica é
por conta dos humanos. A inteligência está em idealizar,
arquitetar e construir os sistemas e não no sistema produzido. Ao
construir sistemas, não atribuímos a eles nenhuma inteligência,
nem produzimos inteligência nos sistemas. Projetar e construir um
produto ou sistema bem elaborado, engenhoso e eficaz é uma ação
inteligente, mas não transfere inteligência para o produto [6].
É
possível simular a inteligência humana? É claro que em fantasia
podemos simular tudo que quisermos nos sistemas computacionais. Os
jogos demonstram essa possibilidade. A imaginação é o limite.
Usando um computador, podemos ser reis, heróis, bandidos, leões,
deuses, podemos governar o mundo, voar, viajar pelo espaço, criar
novos mundos e novos seres, construir o que quisermos, do jeito que
bem entendermos. Um único pixel piscando na tela pode nos parecer
uma estrela longínqua, um coração batendo, ou um farol numa noite
escura no mar. A sensibilidade das pessoas a estas representações é
bastante variável. Há desde os que são completamente capturados
por sua própria imaginação, confundindo-a com a realidade, até
aqueles que não vêem nada mais do que um pixel e ficam esperando
uma informação adicional para saber como interpretá-lo.
A
simulação é uma ferramenta poderosa. Seu uso nas ciências e nas
tecnologias é amplo e disseminado, e requer critérios. Simulação
é o exercício de uso de um modelo. Para simular a inteligência é
preciso ter um modelo de inteligência. Além disso, os modelos
usados em simulação devem ser validados e verificados. Validação
e verificação são processos muito bem definidos na teoria de
simulação e precisam ser rigorosamente discutidos em trabalhos
científicos.
Suponha
que precisemos de um modelo que simula um ser vivo. Consideremos
então um boneco. Suponha que esse boneco seja articulado, isto é,
podemos mexer seus braços, suas pernas, sua cabeça. É suficiente
para simular a vida? Suponha então que, além de ser articulado, ele
pisca os olhos, fala e caminha. É o suficiente? Podemos dizer que
ele simula um ser vivo? E se, além de tudo isso, ele come e salta?
Se isso fosse suficiente, os laboratórios de biologia e medicina
fariam experimentos em bonecos. Embora todas estas disposições
implantadas no boneco imitem sinais visíveis normalmente associados
à vida, falta o essencial neste modelo: falta a própria vida. Não
é possível simular vida: ou temos vida de verdade ou não temos. O
mesmo argumento pode ser aplicado à inteligência. Simular várias
interpretações da inteligência, tal como o aprendizado, mesmo com
rigor científico, não é o suficiente para conferir o rótulo de
inteligente.
Poderíamos
concluir que a questão “se um sistema é ou não inteligente” é
uma questão de interpretação, o que é um ótimo argumento para
explicar os decênios de polêmica em torno da IA. Fica a seu
critério. Mas isso não é suficiente para a ciência. O discurso da
inteligência artificial não pode valer somente para os cientistas
da computação, é preciso ter aceitação universal. Explico: as
leis da física são universais, valem para todos e não apenas para
os físicos. Da mesma forma, as teorias morais e éticas buscam
fundamentos universais, e não é o caso de terem como alvo somente
os filósofos. Os princípios da medicina são reconhecidos pelos
médicos e por todos nós. Precisamos entendê-los e concordar com
eles para que sejam válidos universalmente.
A
questão do consenso é essencial. No entanto, parece ser o caso de
que poucos cientistas de outras áreas estejam dispostos a acreditar
na possibilidade da inteligência artificial. Dificilmente um médico,
um biólogo, um neurocientista ou um filósofo concordarão, após
algum estudo, que o computador pode simular inteligência. Por
exemplo, o neurocientista Miguel Nicolelis, profundo conhecedor do
cérebro e dos computadores e autor de estudos pioneiros na área de
interfaces cérebro-máquina [8], declarou reiteradas vezes que "o
cérebro humano não é computável, não dá para simulá-lo com um
algoritmo” [13].
A
premissa implícita da IA é o dualismo mente corpo, que isola a
inteligência humana na razão, ignorando os aspectos biológicos e
emocionais do cérebro. Considerado por milênios, esse modelo não
é mais aceito por muitos neurocientistas, médicos e filósofos.
Potter nos convida a frequentar as aulas de neurociência e indica a
bibliografia [9]. Damásio ensina que há uma relação
indissociável entre emoção e razão e que as emoções não são
barreiras para a tomada de decisão, pelo contrário, são
componentes cruciais nesse processo [7]. Para ele, é impossível
isolar sentimentos e emoções das decisões racionais. Os fenômenos
mentais, incluindo a inteligência, têm bases biológicas e
neurológicas que não podem ser desprezadas ou ignoradas, sem o
risco de produzir abstrações caricatas e fantasiosas.
Assim
como os desafios da alquimia aceleraram o desenvolvimento da química,
os estudos em IA contribuem enormemente para a computação e para o
desenvolvimento tecnológico. O resultado de tanta tecnologia é que
somos desafiados o tempo todo. Muitos concordam que a tecnologia
aumenta a nossa inteligência na medida em que nos desafia.
Algoritmos não tornam inteligentes os computadores, mas podem
contribuir para aumentar a inteligência humana. Em última análise,
a IA resulta em inteligência, mas natural, não artificial.
Referências
[1]
Dreyfus, H. Alchemy and Artificial Intelligence, Rand Corporation,
1965.
[2]
Dreyfus, H. What Computers Can't Do: The Limits of Artificial
Intelligence, Harper Colophon Books, 1979.
[3]
Dreyfus, H. What Computers Still Can't Do: A Critique of Artificial
Reason, MIT Press, 1992.
[4]
Naur, P. Computing versus Human Thinking, Communications ACM, 50(1),
January 2007.
[5]
McCarthy, J. What is Artificial Intelligence?,
http://www-formal.stanford.edu/jmc/whatisai.
[6]
Murta, C. Não Existe Sistema Inteligente. Jornal da Ciência, edição
4313, http://bit.ly/oVTiav.
[7]
Damásio, A. O Erro de Descartes, Companhia das Letras, 2a. edição,
2005.
[8]
Nicolelis, M. Muito Além do Nosso Eu, Companhia das Letras, 2011.
[9]
Potter, S. What Can AI Get from Neuroscience? LNAI 4850,
Springer-Verlag, 2007.
[10]
Searle, J. Is Brain's Mind a Computer Program? Scientific American,
January 1990.
[11]
Russell, S., Norvig, P. Artificial Intelligence: A Modern Approach,
3rd. Ed., Prentice-Hall, 2010.
[12]
Descartes, R. Discurso do Método e Meditações, Martin Claret,
2008.
[13]
Lopes, R. Máquina não simulará mente, diz cientista. Folha de São
Paulo, http://bit.ly/iR0z3l.