sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Computadores, Cérebros e Inteligência Artificial

 

Este artigo foi publicado no Jornal da Ciência online edição de 05/09/2012. link

 

Computadores, Cérebros e o sonho da Inteligência Artificial

Cristina Duarte Murta
  

O centenário de nascimento de Alan Turing e os recentes avanços em neurociências reacendem a discussão acerca da possibilidade da inteligência artificial.


Máquinas podem pensar? Essa questão inicia um artigo [Computer Machinery and Intelligence] do brilhante cientista inglês Alan Turing [1912-1954], publicado em 1950. Ao falar em máquinas, referia-se ao computador digital. Considerado o pai da inteligência artificial, Turing oferece uma resposta no próprio artigo, dizendo que essa pergunta é demasiadamente sem sentido para ser considerada. Para substituí-la, propõe o jogo da imitação, conhecido hoje como Teste de Turing, cujo objetivo é avaliar a possibilidade de computadores dialogarem com humanos. A questão é reformulada: é possível distinguir humanos de máquinas por meio de um diálogo?

Turing, cujo centenário de nascimento é celebrado em 2012, acreditava que até o fim do século XX os computadores passariam facilmente em seu teste, o que não aconteceu. Uma competição anual, denominada Loebner Prize, reproduz o teste de Turing desde 1991. O prêmio maior, que será atribuído uma única vez, continua em disputa (http://bit.ly/4DbkB).

De maneira exemplar, Turing dedicou, em seu artigo, uma longa seção para apresentar objeções de vários autores à sua questão principal. Uma das críticas é do neurologista e professor Geoffrey Jefferson [1886-1961]. Jefferson argumentou que uma máquina poderia ser considerada equivalente a um cérebro somente quando pudesse exprimir sentimentos e ter consciência deles. Para ele, uma máquina pode até escrever um soneto ou compor um concerto manipulando símbolos. No entanto, sua composição não será em função de sentimentos pois não os experimenta. O requisito da consciência requer que, além de compor a obra, a máquina saiba que a compôs. Até o presente não temos nenhuma máquina que preenche estas características. O computador Watson, vencedor em um jogo de perguntas na TV americana, é um exemplo: jogou sem querer, ganhou sem saber.

Na mesma direção do professor Jefferson estão os neurocientistas Miguel Nicolelis e António Damásio, que lançaram livros em 2011. Em "E o Cérebro Criou o Homem", Damásio discute a polêmica questão da dualidade mente/corpo. Ele defende que é preciso superar a intuição enganosa de que a mente teria um status especial e que seria separada do organismo ao qual pertence. Ver a mente como um fenômeno não físico - distinto da natureza biológica que a cria e a sustenta - é não apenas incorreto mas também um obstáculo à sua compreensão.

Damásio explica que o corpo físico é o alicerce da mente consciente que, por sua vez, é resultado da articulação fluente e simultânea de diversos circuitos neuronais distribuídos por múltiplas regiões cerebrais. A mente é uma consequência da atividade incessante e dinâmica do cérebro e suas células especiais, os neurônios. Além disso, há uma relação íntima entre o cérebro e o corpo. A representação do mundo externo só pode chegar ao cérebro por intermédio do corpo físico. O cérebro é um servo do corpo, pois sua função principal é manter o corpo vivo, tarefa que executa, em grande medida, de forma inconsciente.

Assim, acrescenta Damásio, é má ideia comparar organismos vivos e máquinas. Ele repudia a comparação comum que equipara o cérebro a um computador digital e que descreve a mente como uma espécie de software executado nesse computador. Em suas palavras, essas metáforas "desconsideram as condições fundamentalmente diferentes dos componentes materiais dos organismos vivos e das máquinas" (grifo do autor). Qualquer organismo vivo é equipado com mecanismos homeostáticos globais e, em caso de pane, o organismo vivo morre. Além disso, cada componente de um organismo vivo, isto é, cada célula, é, em si, um organismo vivo. Nenhuma máquina (computadores, aeronaves, etc.) possui algo semelhante. Embora nossa compreensão do cérebro humano seja ainda bem restrita, não há como negar estas diferenças essenciais.

Em "Muito Além do Nosso Eu", Miguel Nicolelis enuncia o princípio da plasticidade, que possibilita ao cérebro armazenar a série única de eventos e experiências que marca a vida de cada indivíduo. A história de cada um está esculpida em seu cérebro. Em consequência, grande parte do cérebro de cada pessoa é totalmente individual. Essa plasticidade permanece em fluxo ao longo de toda a vida, adaptando-se continuamente em função de nossas experiências no mundo.

Destacado estudioso das interfaces cérebromáquina, Nicolelis vê a consciência como a propriedade emergente mais espetacular de um sistema complexo. O cérebro tem bilhões de neurônios. Nicolelis o compara a um oceano e acrescenta que estudá-lo a partir do modelo reducionista dos neurônios individuais e isolados é estratégia insuficiente e inadequada.

Nicolelis discute o desafio de reproduzir a consciência humana por meio de inteligência artificial. Em suas palavras, "o cérebro humano como um todo é simplesmente não computável". Assim, Nicolelis escreve, "o esforço hercúleo de criar inteligência artificial será destinado ao mais retumbante fracasso, caso o objetivo principal seja construir uma mente similar à nossa".

Turing acreditava que o impedimento para esta realização estava na capacidade de processamento e de memória dos computadores, e que prover os recursos necessários era uma questão de tempo. Nicolelis discorda. Para ele, não importa quantos bilhões de processadores, com seus petaflops e terabytes, estão disponíveis. Não é uma questão de quantidade, a questão é de outra natureza.

Outra crítica citada por Turing é de autoria da também inglesa Ada Lovelace [1815-1852], conhecida como a primeira programadora da história da computação. Para ela, a questão é simples: um computador pode fazer qualquer coisa que pudermos programar. Portanto, se pudermos programar as conversas, então o computador poderá se transformar em uma "máquina pensante" como queria Turing. Mas o problema se mostrou complexo demais, pois não é possível prever todas as perguntas em todos os contextos. E para responder é preciso compreender.

O tempo tem dado razão à pioneira Ada Lovelace. Computadores não criam nem inventam nada. O que fazem é executar programas que escrevemos e implementamos. A inteligência está em idealizar, projetar e construir sistemas computacionais, bem como outros tipos de sistemas e soluções para diversos problemas. No entanto, ao construir sistemas, não atribuímos a eles nenhuma inteligência, nem produzimos inteligência nos sistemas.

A propaganda nos informa que estamos rodeados por sistemas inteligentes, de celulares a edifícios, de aspiradores de pó a sistemas de controle de trânsito. Este cenário parece invocar o genial quadro de René Margritte "Ceci n'est pas une pipe" em que há um desenho de um cachimbo e a frase logo abaixo "Isso não é um cachimbo". Margritte não poderia usá-lo para fumar. Projetar e construir um produto ou sistema bem elaborado, engenhoso e eficaz é uma ação inteligente mas não transfere inteligência para o produto.

A inteligência está no projeto e na implementação da solução e não na máquina que a repete automaticamente. Sistemas bem projetados, que produzem o efeito desejado, conforme planejado, são sistemas efetivos. Se houvesse sistemas inteligentes, reclamaríamos com eles em caso de erro, e não com seus projetistas (que logo vão corrigir os problemas no código).

O sonho de Turing parece distante. O fato de não termos alcançado o objetivo de construir máquinas pensantes a partir dos computadores digitais não indica a impossibilidade da produção de inteligência artificial. Mas é preciso não esquecer que o comportamento e a inteligência humanos são indissociáveis da biologia. A inteligência, no homem, transforma literalmente sua própria natureza física e biológica, esculpindo conhecimento em células do seu corpo, tendo emoções e sentimentos como ingredientes essenciais. A construção de inteligência artificial parece requerer substratos biológicos. Assim, para produzir inteligência artificial parece ser necessário construir vida artificial.